O pensamento é um pássaro, um rio, terra preta. Sou uma flor, formiga. Encontro minhocas no solo e pesco com elas peixes enormes que como com pimenta.
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Quando for embora, vou deixar para trás todos esses cadernos e diários. Você vai poder me reconstruir linha por linha. Pensamento sem corpo. Finalmente livre e ao mesmo tempo reduzida a algo acabado. A morte é injusta com aquele que tem necessidade de vingança. A velhice também. A velhice do agressor nos deixa impotentes. A agressão perde sua força, esquecida, pálida como algo próximo de desaparecer. Grafite apagado. Mas por quê te falo de vingança? Se bem no fundo queria te deixar com outra coisa. Um pedido. Fique comigo. Dentro de casa, dentro da garrafa, do jarro, borboleta amarela, azul, branca como cópia delicada de uma história perfeita.
Aquele que se acha um gênio despeja tudo na página, linhas pontilhadas, luz que me ilumina. Marcelo suspira sentado no sofá, ouvindo o programa pelos fones de ouvido, caneta bic. Estou acostumada a ficar sem nada, arroz e tudo, lagarta, ovo e a roupa para ser passada. Lá fora faz um calor infernal, fornalha pronta para assar quem caminha pela rua.
Cigarras são vendidas na esquina, dentro de casinholas de palha, vivas, fazendo um barulho danado. A manhã se espreguiça com lerdeza de gato. A máquina de lavar enche de ruído a área de serviço. Cortinas fechadas me isolam de tudo isso. Do calor, do chinês vendendo cigarras, da máquina de lavar, da manhã mesmo. Rádio ligado, jazz, orquestra ressuscitando acordes antigos, unha pedindo para ser feita, bifes, me faz, me faz, me pinta de vermelho, me tira desse mundo ordinário de pias cheias de louças gordurosas e me traz para um close up de cinema enquanto a heroína fuma um cigarro com suas pálpebras pintadas de azul e seus cílios negros se abrindo e fechando com delicadeza de asas de borboleta. O lugar que existe em algum ponto no espaço ou entre quatro paredes de meu pensamento.
O lugar, perdido para todos aqueles que não eu mesma. Sinto uma excitação ao saber que há a possibilidade de visitá-lo, revê-lo. Todas as minhas coisas guardadas em caixas em algum galpão da Alemanha. Todas as minhas coisas, dissociadas de mim e de minha vida nesse momento no tempo. Primavera chega, sinto o calor da vida, rebentando brotos de flores, acordando vermes, bactérias e insetos. Todas as formas de vida. Sentindo-me mal, aniversário de m, irritação.
Ler Cortázar me revira as entranhas, irritada, dormi sonhando muito, acorrentada às imagens que agora viraram pó, Marcelo se assusta a todo momento com minha presença, o que me irrita ainda mais, porém no fundo não sei o que é, esse avesso que me levou a algum lugar. É preciso força para se andar em linha reta, queria tanto parar. Um ponto, dar voltas numa circunferência, como compasso, o pé fincado e o giro, não precisa ser perfeito, mas daí essa é a essência do compasso, não pode fazer nada a respeito, assim como aqueles que são tortos andam em ziguezague. Todo dia esse grito, esse vamos em frente. Para quê? Se não queremos chegar ao final. Templo budista, cela, chão duro, uma vela queimando lança sombras na parede. Estão dissociadas de mim. As sombras. Eu sou quem olha para elas, quem vê nelas meus temores. Os mantenho escondidos e quando decidem que vão usar um terno e dar uma volta pela rua, o dia está tão bonito, entro em pânico, os quero mortinhos dentro de um caixão, de preferência enterrados. Um constante observar o exterior e medir os ecos dentro de mim.
Existe um mundo lá fora? Não está tudo dentro da minha cabeça? Tudo que arranjo no mundo reflexo do que crio em forma tridimensional na mente. As histórias que leio e as que crio. Tudo, tudo inventado. O rosto das pessoas e as coisas que sinto. Procuro nomes para elas. Quando não encontro, chego a duvidar de que existam. Mais um dia.
Céu e mar de um azul muito nítido. Tons matizados. Verde das árvores, do gramado. Areia marfim. Pequenos caranguejos albinos correndo de lado, enfiando-se nos buracos. Reflexos prateados na superfície azul cobalto da água. Profundidade que hipnotiza, acalma. Brisa que sacia o corpo. Água na temperatura ideal, que engole braços e pernas. Ficar boiando encarando o céu azul lavado. As nuvens como pinceladas brancas. Ouvir os pássaros e as cigarras que cantam às seis da manhã e as seis da tarde. Todos os dias O novo ano para os chineses se inicia na quinta-feira dessa semana, ou seja, dia trinta de janeiro. Ano do cavalo.
Gosto de poder estar dentro desse processo de terminar e iniciar, mais uma vez. É a terceira vez em curto espaço de tempo. Na firma em que trabalho o ano se inicia em outubro. No ocidente o ano se inicia em janeiro e para os chineses, dependendo da lua, pode ser no final de janeiro (como em 2014) ou em fevereiro. Então digo mais uma vez adeus. Seja-bem-vindo novo ciclo com tudo de bom e ruim que se tenha para desfrutar. David Bowie: "It's happening outside.
The music is outside. It's happening now, not tomorrow, yesterday. It's happening now". Não posso deixar de me sentir encarcerada na caixinha mágica, tentando me conectar com um mundo, algo que é ilusório e ao mesmo tempo possível. Ilusório pois na maior parte do tempo estamos falando sozinhos. Quando não, se processa algo maravilhoso ao interagirmos com alguém a meio mundo distante. Ninguém pode negar a utilidade da Internet. Da mesma forma que ninguém pode ignorar o desperdício de tempo e a solidão que ela cria. Um grafite nos muros de Teerã: "Share my loneliness with me". "Está acontecendo lá fora. A música tá lá fora. Está acontecendo agora, não amanhã, ontem. Está acontecendo agora." - Outside, David Bowie "Divide minha solidão comigo" - grafite nos muros de Teerã, Irã. |
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