Cheiro de corpo suado nos lençóis como fragrância esquecida, seu rosto muito branco e seus cabelos como tinta negra escorrendo pelo travesseiro, formando uma cortina que emoldura seus olhos rasgados, seus lábios vermelhos, dentro desse quarto rodeada por vasos de porcelana, dragões de bronze, bonzais manicurados dentro de delicados potes de madeira pintados de verde. Penso em outra coisa, quero lhe perguntar sobre o que aconteceu ontem à noite. Quem tomou aquele trem? Quem era aquele homem que agora deve estar morto?
Forno, cigarras, frutas na calçada na porta da loja, dragonfruit (que nome teria em português?), figos, me lembram do mediterrâneo que nunca conheci, seria bom, ilha grega, mar azul. Conveniente o enorme guarda-sol na esquina, esperando o sinal ficar verde, o chinês senhor que pára ao meu lado me olha de cima abaixo. Tomo muito espaço na sombra? O sinal nem ficou verde e avançamos, já que alguns carros pararam, encontro com os que vem em sentido oposto na segunda pista, onde os carros dobram a direita e disputam o asfalto com os pedestres. Chinês pára, eu sigo em frente, sem olhar para o lado. Sigo, sigo, sigo. Calor danado, devagar para não suar demais, jovenzinhas com sombrinhas, florezinhas e o fundo negro contra os raios de sol que se enfiam na nossa pele, jovenzinhas de shorts, cabelos negros soltos, lisos, pele branco-leite. Toilete público, funcionárias da limpeza conversando com um homem de uniforme sentado numa motinha, walkie-talkie esperneando na sua cintura, cheiro de incenso, estação de ônibus, chineses esperando, árvores na calçada jogam as sombras de suas copas no chão, troncos com pele de vitiligo. Boca da estação, linha quatro, frescor, descendo as escadas, cartão do metrô, mochila no aparelho, a chinesa ao lado não atende aos apelos da mulher da segurança uniforme cor de rosa, cabelos presos. Um engraçadinho entra na minha frente, passo o cartão na máquina ao lado, enquanto ele fica emperrado, satisfação da minha parte, sou mais rápida do que ele. Descendo a escada, branco-leite na minha frente, magrelinha como uma galinha despenada. Aguardo o metrô chegar para me levar para a próxima parada. A próxima parada. Li em algum lugar que o amanhecer em Xangai lembra uma cena de Blade Runner.
O sol vermelho envolto na névoa poluída. Desde que estou morando aqui me sinto mesmo dentro de um filme de ficção científica. Mais do que isso: um filme apocalíptico. Quando saio de casa com minha máscara tentando em vão me proteger do ar poluído. Quando caminho pelos subterrâneos intermináveis cruzando estações do metrô. Quando vejo os escombros das casas antigas sendo demolidas em nome do progresso e de seus arranha céus. O que me traz consolo é ver de vez em quando um chinês andando de pijama pelas ruas do meu bairro. A humanidade desse ato me faz ter esperança de que talvez o futuro não esteja de todo perdido. Primeiro dia de calor intenso em Xangai esse ano.
36 graus celsius é o que diz o termômetro. A umidade do ar nos deixa com uma sensação térmica de um calor mais exagerado. O mundo grita nas notícias na mídia. Massacre no Egito, revolta no Brasil. Big Brother nos observando. Snowden. Decepção com a política global e com a ordem mundial. O caos em que estamos mergulhados. Eu moro na China. Me sinto cansada. Aqui começa a temporada das cigarras. Elas cantam. Elas gritam. Elas fazem parte do verão, aquele que vem todos os anos para nos evaporar cada vez que deixamos os ambientes refrigerados, do qual nos tornamos prisioneiros. Primeiro dia de calor intenso, mas não o ultimo. Entrei na estação Shanghai Indoor Stadium. Linha 5.
Chove. Monitores pendurados na parede exibem trechos de noticiário e de programas idiotas. A maioria dos chineses brinca com seus celulares. Há também os que dormem. O chão está molhado por causa dos guarda-chuvas. As janelas estão cobertas de gotículas de água. Algumas pessoas estão em pé enquanto o metrô sacoleja. Metrô de superfície, assim podemos ver os blocos de prédios altos que se expõe no mesmo formato e na mesma cor. Motel 168, que parece pipocar em cada esquina. Imagino que tipo de quartos eles têm. Sopa de miojo no café da manhã? O som vindo do monitor é alto e incomoda. Alguns lêem jornal. Cheira à roupa úmida. Árvores verdes. Um céu branco acizentado. Você gostaria de dizer alguma coisa antes de partir? Eu nem gosto de você, não deveria me importar. How do you feel? Pá pá pá !!! Pink Floyd no meu ouvido. Um rapaz do meu lado come dumplings. Estação Beiqiao. Muitos descem. Minha viagem continua. Sinto falta da neve. No lugar dela há poluição. Sinto falta de café com leite e pão quente com manteiga. Torta de chocolate. Tenho fome? Não. Tenho saudade de tempo e lugares que ficaram na lembrança como sinônimos de algo bom.
Tenho jeito? Sim. Haverá outros lugares e outros momentos. Xangai esbranquiçada.
Uma cúpula branca pairando sobre nós e se derramando na forma de substância fluída carregada de poluição. Quando se está em um lugar se quer estar em outro. Quando se está em outro se quer voltar. Para onde? Para onde? Andando pelas ruas de Xangai tive a impressão de que o ar quente me pressionava as narinas, tornando difícil o simples ato de respirar. As cigarras com seu canto alto pareciam amplificar a sensação térmica. O calor envolveu meu corpo tornando-o lerdo e pesado. Me peguei pensando em Viena no outono. Me peguei pensando em Falkenstein, assim como quem pensa num lugar mágico e inacessível. Não só pela distância, mas também porque o tempo move tanto as coisas quanto os lugares.
É impossível se voltar a um mesmo lugar duas vezes. Tanto o lugar quanto aquele que o visita já serão um outro. Quando voltar em Falkenstein o lugar que eu conhecia estará perdido para sempre no tempo. Ele será apenas uma lembrança em minha mente. Estou sentada na varandinha do apartamento no vigésimo terceiro andar em Xangai. Eu tenho a cidade aos meus pés. Daqui vejo o rio, que corta a cidade. A ponte que liga Puxi a Pudong. Os prédios altos sumindo no horizonte acizentado. O distante parece tão próximo. Ao tomar banho eu recordei a goiabeira no quintal da minha infância. Essa lembrança com gosto de choro. Há tanta coisa que se perdeu, que ficou para trás. As luzes do prédio à frente do nosso começam a piscar, marcando onde estamos, avisando aos aviões e aos outros objetos voadores que não seria boa idea colidir conosco.
Mais tarde vou dormir tranqüila sabendo que lá fora as luzes piscam. |
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