Estava atingindo a idade em que sua mãe a havia acolhido em sua casa, para criá-la como sua filha. Via seus pensamentos voando para aquele passado, tentando arranjar na nebulosidade de lembranças acontecimentos e rostos. Sentia-se atingindo um marco importante, os quarenta anos que se aproximavam. Metade de sua vida, pois não se via tendo mais de oitenta anos, ou pelo menos, avançando alem dessa idade com todas suas capacidades físicas e mentais. Mesmo que vivesse mais anos, conseguiria manter sua saúde mental a um ponto em que a velhice não se transformasse num estorvo?
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Há anos que não voltava para visitar os pais na cidade onde nasceu. Sentia-se perdendo a conexão com aquele lugar. Afastando-se das pessoas que moravam naquela cidade de modo permanente e irreversível. Deixando para trás aquela imagem de si mesma que permanecia congelada no tempo, pois seus amigos e familiares não acompanhavam o envelhecer diário dela. Bem no fundo sentia medo de que pudesse decepcioná-los ao surgir de surpresa para visitá-los, revelando sua face envelhecida, seu corpo flácido, seus cabelos brancos. Como se aquela cidade e seus habitantes fossem uma foto que permanecia inalterada dentro de um livro que se empoeirava numa prateleira de sua casa. Um livro que ela preferia que permanecesse fechado.
Está na hora de mudar. Quem tem medo de mudança?
Eu, eu, eu, eu. Eco, eco, eco! Em Viena de novo.
Me sinto triste. Talvez porque tudo que vivi aqui tenha ficado para trás, porque nosso apartamento repleto de claridade tenha se tornado uma lembrança. Porque está escuro e faz frio, ou apenas porque não dormi direito durante o vôo e me sinto cansada. Reinventa essa língua, traz ela de volta para mim. Molhada, fresca e nova. Me ensina o que esqueci. Essas palavras que não uso e se enferrujam jogadas num canto. Um buraco na lembrança e para não cair me agarro no que não me pertence. Essas sensações, desejos e definições estrangeiros. Se tento voltar para casa não encontro o meio de transporte adequado. Eu iria a pé se tivesse um mapa, porém tudo que tenho são incertezas e saudade. Coisas que não me levam a lugar nenhum.
O corpo denso e pesado limita a imensidão ao aprisionar o infinito e o atemporal.
O corpo fronteira que não permite o migrar da alma. Permaneço encarcerada dentro da pele, entre os órgãos, no espaço de quatro paredes feitas de carne, sangue e ossos. Eu sou essa outra, eu preciso sê-la
Eu tento encontrar em mim a parte de mim que sou Apenas eu sozinha e a parte que é ela Nós somos em muitos aspectos a mesma Encontrar esse limite é importante para observá-la Só assim ela se transforma na personagem A narrativa é um ser imaterial com vida própria. Um ser imaterial que pode tomar forma. Para isso ela precisa se apoderar de um corpo. Esse corpo precisa entrar num estado de meditação, se fechar em si mesmo, para criar o ambiente propicio para se transformar em texto.
É um equívoco que me faz vomitar na banheira.
Esse ser que não sou eu, que se senta num quarto escuro e que escreve. Esse ser que inventa um outro e que se diz ser ele mesmo. Observa pela janela, do outro lado da rua, a outra: a mulher sentada sob uma luz amarela. Ela não sabe que é vigiada. Ela pressente, não tem certeza. Ela pára, os dedos estarrecidos, os olhos escancarados, os cabelos presos no topo da cabeça. Ela escuta, pensa ter imaginado coisas, volta o rosto para o computador, as mãos nas teclas. Ela escreve para esquecer que é um ser que vive dentro de uma história que eu termino com um ponto final. (um ponto final) . Por que a consciência de se estar vivo não nos acompanha o tempo todo? Por que ao acordarmos e nos prepararmos para o dia, o trabalho enfadonho e a rotina entorpecente mergulhamos nesse estado letárgico? Por que apenas quanto acreditamos estarmos doentes, à beira da morte, ou ao estarmos bêbados ou extremamente felizes somos capazes de sentir a urgência da vida fluindo em nossas veias? A vida cheia de energia e sem equívocos? Por que não somos capazes de senti-la sempre cem por cento, apenas em estado de exceção? Por que vivemos como se não tivéssemos consciência de nossa mortalidade? Como se nossa carne não perecesse a cada segundo, como se nosso rastro não se apagasse atrás de nossos passos?
Eu só tenho as perguntas. |
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